Em “Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra”, Mia Couto escreve, da forma bela como só ele sabe, a verdade que todos sentimos – “A mãe é eterna, o pai imortal”.
Eles vivem enquanto os lembramos. Quando recuperamos momentos de amor, de ternura, de alegria e da passagem dos valores que valem a pena. Sempre que nos deixamos levar para as memórias de outros lugares e tempos. Trazendo-os para quem tanto gostariam de amar se tivessem chegado a conhecer. E se soubermos falar deles, do que pensavam, pelo que se interessavam, do que amavam e como sentiam, é nesses mais novos, naqueles que não conheceram, que se tornam eternos e imortais.
E também foi para esses que eu e os meus irmãos organizamos a exposição que o meu pai nunca fez. Mostramos-lhes a beleza dos seus desenhos, o equilíbrio entre sombra e luz, o rigor da forma e do volume, a sensibilidade e a expressão conseguidas a partir de uma folha em branco e de um lápis de carvão. Das qualidades artísticas libertadas em pedaços de madeira transformados em barcos.
O meu pai nasceu há cem anos em Calendário, uma freguesia de Vila Nova de Famalicão. Ainda menino veio viver para Vila do Conde devido à colocação do meu avô, Oficial de Justiça, no tribunal local. Foi morar na rua da Senra e rapidamente se apaixonou pela nossa terra. Fez os primeiros e grandes amigos e enamorou-se pela vizinha Deolinda, do rés-do-chão, a minha mãe. Num tempo em que o chamavam Zeca.
Foi promovido a Sarmento quando casou e se empregou na Conservatória do Registo Civil. O seu círculo de amigos multiplicou-se. Ser responsável, entre outras coisas, pelos processos de casamento transformou-o em alvo de frequente procura e notoriedade. O sustento em forma de emprego substituiu a predisposição artística da qual nunca desistiu. Serviu em funções públicas até se aposentar. O tempo livre para a satisfação do seu sentido estético, sempre condicionado pela obrigação profissional, surgiu finalmente com a Reforma.
O casamento com a nossa mãe deu frutos. Oito. Aqueles que organizaram, no local onde frequentou a escola primária, a exposição que assinalou os cem anos da data do seu nascimento.
Aqueles que, celebrando-o, coroaram-no Pai.
Publicado no jornal a 29 de maio. Outras opiniões: Abel Maia, Adelina Piloto, João Paulo Meneses e Sara Padre.
