No passado dia 6 de julho teve lugar a última sessão ordinária da Assembleia Municipal. E, diga-se, foi um mandato muito pobre. Nestes quatro anos, a Assembleia foi palco de incidentes lamentáveis, muitos deles inaceitáveis para uma democracia cinquentenária. Além da gritante falta de qualidade de muitos dos seus protagonistas (de quem confunde acutilância com rudeza e frontalidade com deselegância), foi o resultado da incapacidade dos Presidentes da Assembleia em gerir competente e democraticamente os trabalhos. Não raras vezes faltou o respeito pelos direitos dos Deputados, faltou o cumprimento da lei e faltou, grosseira e sistematicamente, a prestação de contas que se exige da Câmara Municipal.

De todas as frases proferidas pelo Presidente da Câmara, registo duas que sintetizam esta afirmação: “Há uma forma de conhecer, de saber e de decidir, que é ganhar a Câmara Municipal”; “Se me permite, e apenas (respondendo) pela estima que tenho pelo Sr. deputado”. Pobre de uma democracia onde quem governa só responde se tiver “estima” perante quem lhe ouse questionar. Pobre de uma democracia onde as oposições e, já agora, os munícipes só podem “saber” se se ousarem apresentar a sufrágio e vencerem…

E isto é a consequência da organização do poder local em Portugal, que é, no mínimo, esdrúxula. A começar pela existência de dois órgãos representativos: a Assembleia e a Câmara Municipal. O primeiro, de natureza deliberativa; o segundo, de natureza executiva. Ora, diz-se que os órgãos executivos são politicamente responsáveis perante os deliberativos. E a própria Constituição consagra a Assembleia Municipal como órgão máximo do Município. Mas como se assegura esta supremacia se, político-eleitoralmente, os dois órgãos dispõem de legitimidade própria e autónoma? Eis, pois, a primeira e grande causa do desrespeito das Assembleias por parte dos Presidentes de Câmara, sobretudo quando a maioria na Assembleia os suporta, situação para a qual pouco há a fazer, ante as habituais e gratuitas demonstrações de prepotência, autoritarismo e vituperação…

E sobre isto, evoco o adágio saramaguiano: “é preciso sair da ilha para conhecer a ilha”. E não é preciso ir muito longe para ver as deficiências deste nosso sistema de poder local. Em terras de nuestros hermanos, as eleições municipais destinam-se unicamente ao órgão deliberativo – o pleno de ayuntamento – que elege o presidente da câmara – o alcalde –, que por sua vez nomeia a sua junta de gobierno local. O alcalde e a respetiva junta são plenamente responsáveis para com o pleno, que pode fazer cair o executivo com a aprovação por maioria absoluta de uma moção de censura ou com a rejeição de uma moção de confiança.

Assim, quando tivermos uma verdadeira democracia local, a eleição do Presidente da Câmara decorrerá da Assembleia Municipal, reservando-se a legitimidade política a esta, mas conferindo-se liberdade para o Edil nomear os membros do seu executivo (tal como no Governo) e dispensando-se os vereadores da oposição num órgão cuja função consiste na execução das opções políticas deliberadas e não na sua auto-sindicância; quando tivermos uma verdadeira democracia local, as Assembleias Municipais terão apenas (e menos) Membros eleitos, devidamente informados, com substância política, independência e os elementares conhecimentos técnicos, indo mais além dos habituais mínimos olímpicos e do “batalhão do contingente”; quando tivermos uma verdadeira democracia local, a aprovação de uma moção de censura numa Assembleia Municipal determinará a queda da Câmara Municipal; e a discussão dos documentos de prestação de contas na Assembleia Municipal não se fará sem que uma comissão de finanças os analise previamente; os regulamentos municipais baixarão a comissões ad hoc, que os apreciarão previamente, ao invés de irem diretamente para o plenário; e as Mesas da Assembleia também incluirão membros das oposições, segundo a boa tradição parlamentar; entre muitas outras “minudências”…

A propósito, a atual e 17ª legislatura arrancou com a polémica em torno de uma revisão constitucional. Entre as “preambulares” futilidades dos revisionismos históricos e os pontapés ao Estado de Direito, não haverá alguém que se lembre de reformar o sistema de poder local, verdadeiro parent pauvre da nossa democracia? Será muito pedir uma verdadeira democracia local?

Nota: Este artigo está na última edição em papel do Terras do Ave com data de 6 de agosto (data que deve ser tida em conta para o devido enquadramento temporal do conteúdo).

É publicado aqui neste dia porque, após um período de férias logo a seguir ao lançamento desse número, o trabalho já foi retomado no jornal.  

Outros autores de opinião: João Paulo Meneses, Abel Maia, Gualter Sarmento, Sofia Castro e Carlos Real.

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