Com 14 anos de idade, Bruno Meireles Pinto sofreu um acidente quando mergulhava e ficou tetraplégico.

A vida previsível do então adolescente desportista seguiu outro rumo, mas hoje, este mesmo vilacondense, com 46 anos, diz-se de bem com a vida e até já lançou a sua primeira obra literária intitulada “Mansão Meireles e os Segredos Escondidos” (a 2.ª edição está pronta e o autor vai estar a dar autógrafos amanhã, sábado, às 15h00, na Feira do Livro do Porto).

Uma história de vida inspiradora, em entrevista, que está, na íntegra, na última edição em papel do jornal Terras do Ave.

Agora e por aqui, temos a oportunidade de publicar uma parte da conversa que aborda a sua vida até ao presente, ficando para outro momento o conhecimento da sua faceta de escritor e em concreto da sua primeira obra literária (acesso no final desta página) . 

 Onde nasceu, quando e como era o seu agregado familiar?

Nasci em Vila do Conde, em 1978. O meu pai, Eduardo, era diretor de uma multinacional de seguros e minha mãe, Celeste, tinha uma loja de fruta no Mercado Municipal. Somos oito irmãos. O mais velho é o Eduardo, a seguir vem o João, o Miguel, a Anita, eu, o Ricardo, a Joana e a Rute.

Com tantos irmãos a infância deve ter sido bem animada…

Foi fora do normal e perfeita. Havia sempre movimento e interação entre nós. A minha mãe levantava-se às seis da manhã para montar a banca e tínhamos duas colaboradoras, a Isaura e a Helena, para cuidar dos pequenos-almoços, das roupas e enviar-nos para a escola ou infantários.

Onde estudou?

Na escola dos Correios, no 1.º ciclo, e depois na Júlio Saúl Dias.

Era uma criança muito mexida?

Muito. Andava sempre de bicicleta de um lado para o outro. Hoje fala-se muito em hiperatividade, pois, em retrospetiva os meus pais dizem que eu devia sofrer de algo do género porque não parava quieto. Mesmo em casa e ao domingo. Só com o desporto é que comecei a acalmar.

Na canoagem?

Comecei na ginástica, mas comecei a sentir algum desconforto por o meu pai ser o presidente do Ginásio. E decidi mudar-me para o Fluvial. Falei com a minha mãe para preparar o meu pai para a notícia e ela tranquilizou-me porque afinal o meu pai também tinha andado no Fluvial, tal como os primos dele e o meu avô. E assim foi. O meu pai disse-me que tinha o apoio dele e que o importante era que eu praticasse desporto.

E na canoagem grande parte dos treinos seriam ao ar livre.

O que fazia toda a diferença. E depois o treinador era extraordinário e teve um papel muito importante em todos nós. O José Garcia criou-nos regras e responsabilidades. Lembro-me de andar a faltar muito à escola e, claro, as notas serem más. Pois, o Garcia pediu-me o boletim e foi claro: “a canoagem para ti acabou. Desleixaste-te e só vês canoagem e isso não pode ser”. Para mim foi um sobressalto. E mesmo com negativa a quase tudo, pedi um voto de confiança prometendo mudar. Estudei muito e até acabei com um cinco a história. E aprendi que até era fácil estudar, desde que soubéssemos programar bem o tempo.

É nessa fase inicial da adolescência, com 14 anos, que tem o acidente.

Curiosamente, estava para não ir para o Algarve porque havia um “batismo” de canoagem, a descida do rio Sella, em Espanha. Mas na minha cabeça – e poucas pessoas sabem disto – tinha a convicção de que devia ir para proteger a minha mãe. Uma ideia sem cabimento, porque estavam lá o meu pai e os meus irmãos. Mas eu achava que tinha de estar lá. E fui.

E é em Tavira que acontece o acidente?

Sim, em Cabanas.

E como foi?

Num domingo, após o almoço, eu e dois irmãos e decidimos ir para a Ria Formosa na zona onde uns barquitos fazem a travessia para a praia. E decidi mergulhar. Subi para um barco pensando que havia profundidade, porque os barquitos circulavam ali para trás e para diante, mas acerto em cheio com a cabeça no fundo, provavelmente num banco de areia, um “monco”, e, de imediato, perco parte da visão, fica tudo embaciado. Julguei que era algo neurológico e recordo-me de dizer o nome de todos os meus irmãos e sossegar. Nunca pensei é que fosse algo no pescoço.

Tudo isto debaixo de água?

Sim, estive em apneia enquanto pude. Tentei morder uma corda, mas acabei por furar os lábios. Depois a boca abriu, por um espasmo ou uma contração, e não a conseguia fechar por mais que tentasse. Não sei explicar, deve ser isso que sucede aos afogados.

E os seus irmãos?

Não se aperceberam e pensaram que eu estava na brincadeira. Só que umas pessoas começam a achar estranho haver um corpo a ser levado pela ondulação, a chamada mareta, e chamam-lhes a atenção. Os meus irmãos, acredito que por vergonha, vão então buscar-me e é nessa altura que se apercebem da gravidade da situação. Eu já estava em pré-afogamento, a engolir água há 10, 15 segundos.

Alguma vez perdeu os sentidos?

Ali não, estive sempre consciente.

E quando é retirado da água?

Colocam-me de barriga para cima, mas eu não conseguia levantar a cabeça, o pescoço não tinha ação e não respondia. E também não sentia as pernas. Acho que é aí que o meu irmão percebe que, realmente, alguma coisa má se passa. A minha sorte, dentro da pouca sorte, é que estava lá alguém ligado à medicina, não sei se uma enfermeira ou uma médica, que disse para não me mexerem porque podia ser perigoso.

A lesão era mesmo grave.

Sim, tinha sofrido uma lesão vertebro-medular. Parti a C5 e destrui a C6.

E os seus pais são alertados?

Sim e só ouvia a minha mãe aos gritos, mas não a conseguia ver. O meu pai tentou tirar o carro, mas, com a aflição, não conseguiu. E ainda bem porque se me colocassem dentro de um automóvel, sem qualquer tipo de mobilização, provavelmente chegaria morto ao hospital.

Foi, claro, de ambulância…

…e a vomitar a água que tinha ingerido. À porta do hospital de Faro devo ter perdido os sentidos porque não me recordo de lá entrar. Acordei num quarto com uma luz fraquinha, a perguntar onde estou e ouvi: “se estás aqui, é grave. Também estou porque, numa ultrapassagem, de mota, fui contra um autocarro”. Pensei que não era comparável, que estava bem, mas quando tento me levantar…apaguei. Não sei se caí ou o que aconteceu, só me lembro de, no dia seguinte, prepararem-me para a transferência para Lisboa.

Com todos os cuidados que a situação exigia.

Estive à espera de um helicóptero, mas não se encontrava disponível e mandaram uma ambulância especial. Fui envolvido numa espécie de colchão e, com um colar cervical, fomos para o Hospital de S. José.

Para ser operado?

Sim, mas quando chegamos o médico tinha acabado de operar e aproveitaram para realizar exames. O doutor Paneiro Pinto, que foi sempre impecável comigo, explicou o adiamento para o dia seguinte e isso permitiu-me estar com os meus pais, que, dizem os meus irmãos, viveram um sofrimento sem precedentes. Aliás, foi a primeira vez que viram o meu pai chorar. A minha mãe tentava disfarçar muito bem, mas percebia-se pela pela cara dela, que tinha estado a chorar e o sofrimento.

Apercebeu-se da gravidade dos ferimentos?

Não, nunca me explicaram muito bem. Pensei que seria algo como operar um braço ou uma perna e depois ficaria tudo bem.

Mas, não.

Começo a estranhar que algo se passa quando, antes da operação, não vejo os meus pais. Disseram-se que tinham ido buscar roupas e assim, mas, no corredor, a caminho do bloco, vi um bocadinho do rosto da minha mãe a espreitar e fiquei desconfiado. Soube mais tarde que, como o risco era elevado, os meus pais tinham sido preparados para a possibilidade de eu partir e não eram aconselháveis despedidas.

O que quase acontecia.

Durante a operação sofri três paragens cardíacas. Mas não vi túnel nenhum, nem luz, nem senti paz diferente…não me lembro de nada. Só me contaram depois que a intervenção tinha sido muito complicada.

Quanto tempo ficou lá em Lisboa?

Uma semana e fui muito bem tratado. Até a comida era “à lista”. Parecia um hotel. O que vai contrastar muito com o Porto.

É para onde vai a seguir?

Para uma unidade que o Hospital Santo António tinha perto da Universidade Lusíada e que hoje já não existe. Foi um choque tremendo. Tudo me parecia a cair, velho e deprimente. E fui-me abaixo. Tinha apenas 14 anos e nenhuma experiência de hospitais. Mas, apesar disso, fui alvo de uma enorme amabilidade. O pessoal de enfermagem tratava os doentes como filhos, sempre a ver como nos podiam ajudar.

Mas a diferença com o que tivera em Lisboa era substancial.

Não havia cozinha e a comida vinha do Santo António. Acho que ao almoço era sempre peixe frito e arroz. A minha sorte é que a minha mãe levava queijos, fiambres e outras coisas que me permitiam contrabalançar.

Nessa altura, a notícia do que lhe tinha acontecido já tinha chegado a Vila do Conde.

E sei que caiu como uma bomba. E por incrível que pareça houve quem tivesse dito que eu tentara o suicídio, coisa que, com aquela idade, nem sabia muito o que era.

E o que vem a seguir?

Sete meses de fisioterapia exaustiva. Foi muito violento. E tive muita dificuldade a adaptar-me à cadeira de rodas. E quando vou para casa, valeu-me a família. Todos, claro, mas o meu irmão Ricardo tem um coração de ouro e é o melhor de nós. Um ser humano excecional, sempre disponível para tudo. Nunca diz não a ninguém.

E esse regresso a casa e a Vila do conde foi difícil?

Muito. Porque os meus irmãos continuavam a estudar e a sair com os amigos e eu estava numa cama. Sem poder fazer canoagem, bodyboard e até waveski, que começara. Na altura praticamente nem mexia os braços e estava sempre deitado. Acho que só me levantava para as refeições.

Esse tempo durou muito?

Não tenho bem a noção. Na minha cabeça pareceu um ano ou mais. Depois, aos poucos, comecei a sair da cama, a ir de cadeira de rodas até ao Alameda e por aí. Como morávamos num apartamento, os meus pais decidiram construir uma moradia que me deu outras condições de mobilidade e autonomia.

E os estudos?

Eram impensáveis. As escolas daquela altura não tinham as condições das do presente e também estava a adaptar-me à cadeira de rodas. Ao fim de 45 minutos já não conseguia estar sentado, tinha de me deitar porque perdi músculo e gordura.

O regresso à normalidade foi aos poucos?

Primeiro com mais tempo na cadeira, depois já dava para ir ao cinema ou aguentar uma viagem maior de carro, enfim a progressão foi vagarosa. Até que surge a oportunidade de ir ao Algarve.

Fazer o exorcismo do que estava na memória?

Estivemos num empreendimento em Vilamoura e consegui fazer piscina com a ajuda dos meus irmãos. Foram momentos de grande felicidade e, nessa altura, fui ver o sítio onde me magoei. Ainda estava um bocado revoltado, mas ao vir-me embora refleti: “não, eu só vivo uma vez. E vou viver isto da melhor forma”. Não houve promessas ao espelho ou discursos. Foi uma coisa interior. Fiz o ponto de viragem. E tudo começou a correr maravilhosamente.

Como assim?

Conheço uma mulher, troco mensagens com ela, namoramos e casamos. Uma relação que termina em 2009.

Mas nessa altura como é que era a sua vida, além dessa parte mais pessoal?

O meu tio Zé Rui, que é fantástico, ofereceu-me um modem, passo a navegar na Internet, que ainda estava muito no início e abre-se um mundo gigante. Sempre fui muito curioso e comecei a ver notícias e documentários, a aprender línguas e nunca mais parei de me cultivar. Como não consegui ter escola, através da internet cresci cultural e intelectualmente. Não sei se o meu tio faz ideia da diferença que a prenda teve, mas a vida mudou completamente. Consegui comprar um carro e obter um empréstimo para uma casa.

Mas acaba por se separar.

Sim. Sofri um bocadito com a ausência dela, mas depois, através de amigos comuns e passado um ano, conheci a Manuela, que é um ser humano fantástico. Acho que foi enviado para mim. É, de facto, a minha alma gêmea, como ela disse no programa da Cristina Ferreira. É ela que me convence a fazer coisas diferentes, desde andar num carro de rali, que adorei, até surf adaptado, viajar…e é também ela quem sugere que comece a consertar computadores. E com o passa-palavra, a atividade já dura há cinco anos.

É essa, digamos, a sua profissão?

Sim, sou técnico de informática. Trabalhando em casa, faço de tudo.

 

E, pronto, é esta a primeira parte da entrevista a Bruno Pinto que encontra, na íntegra, na edição em papel do jornal Terras do Ave.

Encontra um segundo momento aqui.

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