É quase hipnótica a forma como a investigadora Joana Xavier fala apaixonadamente da ciência e particularmente do mar e da vida que ele contém.

Criada nas Caxinas, a dois passos da praia, foi subindo a pulso com muito estudo e empenho, até atingir o atual patamar cimeiro no mundo científico que procura atenuar o grande desconhecimento que ainda temos do que se passa no fundo dos mares.

O que a seguir publicamos é parte da entrevista que saiu na última edição do seu jornal Terras do Ave.

Na edição em papel encontra a conversa na íntegra, designadamente uma segunda parte em que fala do significado que atribui a Vila do Conde e às Caxinas em particular.

 

Ser criada tão perto do mar teve influência na sua vida?

Muita. À semelhança de muitas crianças que cresceram nas Caxinas, sempre vivi muito influenciada pelo mar. Passávamos imenso tempo na praia que, como costumo dizer, era o meu recreio grande. E mesmo depois, já no secundário, sentava-me num cafezinho ao pé da praia e era ali que estudava.

Para ter o mar por perto?

Sempre senti um apego ao mar, inspirada pelos documentários de Jacques Costeau, que, pela televisão, trouxeram o fundo do mar para dentro de casa. Os meus pais comentavam que eram melhor do que os desenhos animados, porque eu ficava sossegada a descobrir o fundo do mar e a aprender tudo sobre os animais

E aí nasce a paixão pela biologia…

Desde muito pequena que dizia que queria ser bióloga marinha.  Aliás, acho que o meu pai ainda terá lá para casa uma das minhas primeiras redações – daquelas que nos mandam fazer na escola, sobre o queremos ser – e escrevi que ia ser oceanógrafa na grande barreira de coral da Austrália.

Que detalhe…

Era o que dava nos documentários com aquelas imagens absolutamente extraordinárias.

Mas a sua família está ligada ao mar?

Não, o meu pai era funcionário de um banco na Póvoa de Varzim, na Caixa Agrícola, e a minha mãe trabalhava na antiga Portugal Telecom.

Depois da escola “primária” nas Caxinas onde estudou a seguir?

Fiz o 2.º ciclo na Frei João e o Secundário na José Régio.

Foi uma boa aluna?

Sempre fui uma aluna dedicada, interessada e tive bons professores nas áreas das ciências naturais, principalmente na José Régio. Mas também tive uma vida perfeitamente normal, e na altura, dedicava-me imenso ao voleibol que conseguia conciliar muito bem.

E como é que surge a ideia de rumar à Universidade dos Açores?

Como disse jogava voleibol no Ginásio Clube Vilacondense e fomos fazer um torneio aos Açores. Já tinha a certeza que queria fazer uma licenciatura em Biologia e de preferência em Biologia Marinha, mas apaixonei-me pelo arquipélago, principalmente pelo mar que tem um azul muito próprio. E quando regressei disse aos meus pais: quero ir estudar para Universidade dos Açores, em São Miguel.

E como foi esse tempo universitário?

Maravilhoso.  Era uma universidade relativamente pequena e jovem comparada com a maioria das do continente. O departamento de Biologia tinha sido constituído há pouco tempo e os professores eram também jovens. Gente muito motivada e apaixonada pela área científica, pela Biologia Marinha e que acabaram por se encontrar lá.  Havia ali dinâmica e muito trabalho prático.

E fez lá a licenciatura de cinco anos?

Demorei um pouquinho mais porque também fiz uma instância na Universidade de Amsterdão [Países Baixos] como parte do meu estágio de licenciatura. Quando regressei ao Açores, defendi a minha tese, trabalhei na Universidade até conseguir uma bolsa de doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). E lá voltei para Amsterdão.

E depois?

Feito o doutoramento [sobre os padrões de diversidade e filogeografia de esponjas marinhas do Nordeste Atlântico], regressei para o CIBIO Açores, que é, no fundo, uma espécie de um grupo satélite do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos daqui da Universidade do Porto, que está em Vairão, mas ligado à parte da Biologia Marinha. E começo a fazer o pós-doutoramento de três anos [estudo de esponjas de mar profundo] com outra bolsa da FCT.

Na altura da crise económica…

A crise dificultou muito a investigação, as universidades, a ciência toda em geral. Mas por coincidência organizei um workshop internacional na Universidade dos Açores, com colegas um pouco de todo o mundo e um era da Universidade de Bergen que me desafiou: vou abrir uma posição na minha equipa lá na Noruega [para estudo dos ecossistemas profundos da crista média do Ártico], se estiveres interessada diz alguma coisa. Na altura, estava longe de pensar sair do país, mas a situação complicou e quando ele voltou a insistir decidi partir novamente à aventura.

E correu bem na Noruega?

Claro que sim, acabei por ficar lá cinco anos e meio. Tínhamos boas oportunidades em termos de financiamento, menos constrangimentos e burocracia, tudo era mais fácil para a investigação científica.

E mesmo assim decide regressar a Portugal?

Os meus filhos já falavam norueguês e estavam adaptados ao país, mas quando recebi a proposta da Universidade de Bergen para uma posição permanente, acho que “caiu-me a ficha”. E agora? se aceito isso, vou ficar aqui mais vinte anos? Eu e o meu companheiro já tínhamos muitas saudades da família, os nossos pais estavam a envelhecer e os regressos à Noruega, após as férias, começavam a ser dolorosos, principalmente por causa dos nossos filhos que têm uma relação maravilhosa com os avós.

E é aí que surge a possibilidade de entrar para o CIIMAR como investigadora?

Tudo começa dois anos antes. Vim a Portugal participar numa conferência na Fundação Champalimaud onde conheci uma colega do CIIMAR [Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental da Universidade do Porto], a Susana Moreira, que me convidou a visitar as instalações em Matosinhos e reunir-me com colegas e investigadores. E fiquei encantada. Fui muito bem recebida pelo diretor do CIIMAR, o professor Vítor Vasconcelos e fiquei muito bem impressionada com a investigação, a interdisciplinaridade, o ambiente dinâmico, ambicioso do ponto de vista científico e muito jovem também. Ficou ali plantada uma sementinha e quando surgiu a possibilidade de regressar a Portugal negociei com a Universidade de Bergen mantendo-me como professora associada.

E no CIIMAR tem liderado alguns projetos. O que é o “DEEPbaseline” que envolveu  pescadores desta zona?

Foi o primeiro projeto que submeti quando cheguei a Portugal. Foi financiado em 60 mil euros pelo Fundo para a Conservação dos Oceanos, promovido pela Fundação Oceano Azul e pelo Oceanário de Lisboa, que todos os anos abria uma “call” para projetos em áreas temáticas e, nesse ano, era dedicado aos invertebrados marinhos. Ora, tendo crescido nas Caxinas, sabia que os pescadores conheciam alguns dos habitats de espécies de esponjas, corais, etc., que são capturadas acidentalmente nos aparelhos de pesca. E então fizemos inquéritos aos pescadores, na Póvoa, em Matosinhos e Aveiro, levando também um álbum com fotografias de espécies e quando eles diziam “reconheço isto, já veio na rede”, tentávamos saber em que zonas, a que profundidades, com que tipo de aparelho de pesca… Acabamos logo por perceber que não só reconheciam espécies que para nós, do ponto de vista científico, não estavam ainda confirmadas por aqui, mas que até tinham nomes comuns para elas, como o pão-de- ló, os cornetos e por aí…

Esse trabalho vai ter seguimento?

Sim, vamos procurar validar os resultados através de 3 novos projetos. Um deles é financiado por uma bolsa da National Geographic, aprovada há pouco tempo, e chama-se “DEEP Relics” e aproveitará precisamente o conhecimento ecológico local dos pescadores. Eles já nos mostraram as zonas onde é grande a probabilidade de encontrarmos os habitats em condições pristinas, menos impactadas e agora, usando algumas tecnologias de baixo custo – chamamos assim, mas são algumas dezenas de milhares de euros -, vamos explorara esses locais com os pescadores com recurso a câmaras subaquáticas que podem ir até aos mim metros de profundidade, fazer o trabalho de exploração.

E quais são os outros projetos?

O SponBIODIV, cofinanciado também pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e que agrega 10 parceiros de nove países europeus, mais o Brasil e a África do Sul, e que é mais dedicado aos habitats de esponjas marinhas. Ronda um milhão e meio de euros e é coordenado por nós, no CIIMAR. Temos o BioProtect, também europeu, que começou há pouco tempo, procura desenvolver ferramentas inovadoras para o mapeamento da biodiversidade dos fundos e envolve também investigadores das Universidades de Aveiro, dos Açores e do INESC TEC e do AIR Centre. E o TwinDEEPS, que tem conceito e âmbito diferentes, é financiado em cerca de um milhão e meio de euros e o CIIMAR lidera.

(…) 

Porque se fixou em Vila do Conde?

Em dois períodos distintos vivi ao todo dez anos nos Açores e gostei muito. O ambiente natural, o mar, as montanhas e as lagoas, etc e imaginava-me a viver lá o resto da minha vida. Mas umas férias aqui, em Vila do Conde, foram um ponto de viragem para mim. Talvez a circunstância de estar com os meus filhos pequenos, perceber a ligação deles com os avós e vê-los a brincar na Praia das Caxinas, como eu fazia quando era pequenina, senti de repente – e nem sei explicar muito bem porquê – uma sensação de pertença, de regresso, um sentimento tão forte, que mudou totalmente aquilo que pensava.

Não sabemos o dia de amanhã, mas já não se vê longe daqui?

Não, de facto não vejo. E não sou uma pessoa particularmente saudosista. Tinha sempre, obviamente, muito gosto em voltar a Vila do Conte, passar aqui as minhas férias, estar com a família, fazer os meus passeios ao pé da praia, ir às Curtas [Festival de Cinema], etc., mas vivia sempre isso sem um saudosismo. Ou seja, também aproveitava aquilo que estava a viver nos sítios onde morava. Mas agora que regressei é quase como se nunca tivesse saído. E tenho um prazer e um orgulho muito profundo de poder proporcionar esta infância aos meus filhos e de reencontrar tantos e bons amigos.

E está bem nas Caxinas?

Sem dúvida. Quando voltámos para Portugal, fomos viver junto à Rotunda dos Professores, pertinho das escolas e gostei bastante. Mas surgiu a oportunidade de ficarmos nas Caxinas, mais perto do mar e do meu pai. E pensamos: isto vai ser bom para os miúdos ganharem mais autonomia, aproveitar a infância, como aconteceu comigo. E estamos a adorar. Os nossos filhos convivem com amigos de cá e os que vêm passar férias. Temos vizinhos maravilhosos E até a nossa cadelinha, a Olívia, que adotamos há cerca de um ano, já tem os seus amigos caninos que são de outros vizinhos. Às vezes combinamos ir passear os cães ao mesmo tempo. Eles estão ali a brincar, e nós ficamos na conversa. Ou seja, temos ainda aqui este sentimento local, de comunidade…

Que nas cidades maiores tende a ser mais raro….

Nas cidades maiores não há tanto e eu, no estrangeiro, não tinha. Tive experiências fantásticas a muitos níveis, tanto nos Países Baixos como na Noruega, mas faltava-me um bocadinho este círculo mais social.

É então uma caxineira de corpo e alma?

O meu pai é de Vila de Conde e a minha mãe era do centro do país. E eu só não sou vilacondense de nascimento por uns meros meses. Mas quando ainda era bebé os meus pais mudaram-se para Vila de Conde e portanto, para mim, sou vilacondense e sou, de facto, caxineira, porque cresci nas Caxinas e a memória que tenho de infância, com os meus irmãos Nuno e Rui, mais velhos, é daqui. Se calhar, mais do que terem sido as Caxinas a me adotar, fui eu que adotei as Caxinas.

 

 

 

 

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