O olhar de Manuel atravessa mais de meio século de memórias à procura do momento em que percebeu que o seu miserável emprego não conseguia calar a fome dos filhos. Do dia em que a razão lhe apertou o coração e lhe indicou o caminho para a França dos salários capazes de pôr comida na mesa, roupa no corpo e calçado nos pés.
Foram árduos aqueles tempos de bidonville em Champigny e trabalho nas obras. A condição ilegal em que se encontrava fragilizava-o perante o apetite voraz de patrões gananciosos e oportunistas. Mas, passados os primeiros tempos, foi arrumando a vida. Legalizando a sua condição. Lutando por direitos laborais. Conquistando nível de vida bastante para chamar a família para o pé de si.
Foi já num patamar de alguns degraus acima daquele em que ele começou que os filhos enfrentaram o novo desafio. Os restantes degraus foram vencidos na geração dos netos. Estão em igualdade com os demais franceses. São daquele país que é tanto deles como de todos os outros. Não por terem esquecido a sua origem. Mas porque para ele contribuíram e porque com eles o país enriqueceu.
Com oitenta anos, Manuel ainda sente a mágoa dos olhares desconfiados que lhe eram destinados e da amargura de carregar o rótulo de ilegal. Que é isso de ilegal?! Manuel foi somente uma pessoa que apenas procurou, noutro país, uma vida que o devolvesse à condição de dignidade a que qualquer humano deve ter direito. Ilegal deveria ser o sistema que o condenou à miséria e à emigração e injusto é o mundo onde parece que não cabem todos apenas porque há uns poucos que ocupam o lugar de muitos, enxotando-os da sua terra para fugir da fome, do terror e da guerra. Na procura de uma vida melhor. Às vezes, só na procura de vida.
Tal como há quase sessenta anos aconteceu ao Manuel, sucede agora com pessoas de outras latitudes e longitudes. De locais onde há pobreza e fome. Países em guerra e regiões onde impera o terror. Não se chamam Manuel. Chamam-se Agung, Khadija, Gisberta, Anatoly, Cahaya, Juracy, Muhammad ou Lyudmila. Mas que, tal como o Manuel, não merecem olhares desconfiados nem dísticos de ilegais. São pessoas! Com direito a vida decente. Como cada um.
Como todos! Todos! Todos!
Publicado no jornal a 26 de junho . Outras opiniões: Abel Maia, Adelina Piloto, João Paulo Meneses e Carlos Real.

